sábado, 26 de março de 2011

BIANCA

 

BIANCA

A noite precoce preparava-se para deitar sobre a fabulosa cidade e todas as luzes começavam a cintilar como uma incomensurável galáxia. A Dra. Bianca Ramos, também, no fim de um dia de consultas complicadas, ansiava por desvestir as roupas sóbrias.
Ela não sabia por que, de vez em quando, ao final do expediente diário, sentia uma necessidade enorme de descansar, aparentemente para refazer suas energias depois das sessões complicadas com seus pacientes problemáticos. Deitava-se então, inteiramente nua, sem o empecilho das roupas do cotidiano, que escondiam o corpo perfeito, esguio, firme e ao mesmo tempo macio, sensível, ainda intocado por outras mãos, apesar de balzaquiana. O seu próprio toque lhe agradava muito, o que lhe causava medo. Ligava o som ambiente para ouvir música romântica e relaxar. Assim, adormecia, no divã do seu consultório de Psicanalista.
Sempre que isso acontecia, curiosamente, nunca se lembrava do que fazia a partir do exato instante em que se desligava no seu consultório. Mas ela nunca se importara muito com isso. Acordava no dia seguinte deitada na sua cama, no aconchegante apartamento de solteira, nua como estava quando adormeceu, mas renovada, bem disposta. E assim foi, também, naquela noite.
Quando deixava o apartamento para mais um dia de trabalho na manhã seguinte, um dia fresco e ensolarado de outono, abriu a bolsa para guardar as chaves e encontrou um bilhete escrito em papel próprio com o timbre de um hotel chamado Barra Mar, onde estava escrito o seguinte: “Obrigada Oriana, pela inesquecível noite de prazer.
Beijos”,
Marcia e Rafael.




Oriana despertou naquela noite, pouco depois das vinte horas, com a nítida impressão que tinha ouvido o toque do telefone. Sempre tirava um cochilo após o expediente quando tinha algum programa para fazer à noite.
Psicanalista, solteira, beirando os trinta anos, tinha o corpo perfeito, daqueles que classificamos escultural, chamava para si a atenção quando chegava a qualquer lugar.
Levantou-se, nua, como costumava dormir, estava se sentindo extremamente excitada, melhor assim, o relato de algum paciente daquele dia devia ter provocado a sua libido, pelo que chamam, se não me engano, o mecanismo da transferência.
Foi examinar a sua caixa de mensagens. Existiam quatro novas: uma da sua mãe que mora no interior do estado, outra de empresa oferecendo produtos, que foi imediatamente apagada. As demais eram mensagens de interessados em fazer programas. Uma delas de um homem de passagem pela cidade, a negócios, que foi indicado por alguém, outra era de uma mulher chamada Marcia, notou que estava repetindo a mensagem três dias seguidos, parecia estar muito ansiosa por conhecê-la. Queria um encontro para aquela noite.
Preferiu responder à mensagem da mulher, porque ela estava propondo um programa a três, também porque gostava muito quando tinha mulher envolvida, e naquela noite tudo estava acontecendo de maneira muito especial, aumentando as suas expectativas.
Ligou imediatamente para o número do telefone indicado e combinaram o encontro em um hotel chamado Barra Mar. Informou o número da conta bancária de um orfanato onde deveria ser feito o depósito da quantia combinada e foi logo tomar uma ducha na suíte do consultório, ansiosa pela noite que se anunciava.
Marcia veio recebê-la à porta do apartamento e a cumprimentou com um belo sorriso e um selinho nos lábios. Era uma morena muito bonita, aparentando cerca de vinte e oito anos. Oriana sentiu, de imediato, o calor que irradiava do corpo sob o vestidinho de tecido fino. Foram para a saleta onde foi apresentada a Rafael. Ele devia ter trinta anos e estava usando uma camiseta que permitia adivinhar o corpo malhado. Era, enfim, um casal bem adequado ao seu desejo, como seu corpo estava pedindo naquela noite.
Checou o comprovante de depósito, devolveu-o  para Marcia e deu as informações que costumava, relativas ao que ela não permitia que fizessem: apertassem os seios que eram perfeitos ou fizessem marcas de qualquer tipo e que também não praticava sadomasoquismo, de resto, poderiam usufruir do seu corpo que era uma fábrica de prazer.
Aquela noite foi além das expectativas, estava exausta quando foi tomar uma ducha e deixou o casal na cama. Despediram-se, e Oriana saiu para a madrugada fria, doida para se enfiar embaixo do cobertor.

COMO DOIS ANIMAIS


COMO DOIS ANIMAIS

Na execução de seus ofícios, provavelmente tinham como objeto a mesma alma, cada um querendo-a para si. Encontraram-se numa balada, estavam dançando embriagados pelo ritmo quente, inebriante e delirante quando seus corpos se tocaram de leve, mas o suficiente para experimentarem uma sensação estranha, deliciosa. Agora propositalmente se roçavam: uma, duas, tantas e tantas vezes; ela para sentir um calor, leve ardência no ponto em que sua pele era tocada, ao passo que ele sentia como um sopro de brisa ou o contato macio de uma pluma. Então ficaram de vez, dançaram a noite toda embalados por aquela sensação estranha. Os olhos azuis dela, quase transparentes, não conseguiam se desgrudar daqueles olhos negros, poderosos e dominadores.
Eles tinham que descobrir o porquê dessa força estranha que os impelia como se tivessem que se unir, e assim, na madrugada fria, ao hálito da primavera, como duas criaturas livres, se entregaram e se amaram ao relento, como dois animais.
No seu jeito rude ele sentia que ela era uma mulher muito diferente de tantas outras que a ele se entregaram. Ela parecia que flutuava, enquanto seus ouvidos escutavam cânticos, e se deleitava com o calor intenso do contato delicioso... E se deixou levar, em frenesi, naquela viagem rumo ao desconhecido.
Amaram-se até o esgotamento, dormiram abraçados e só acordaram na aurora. Despediram-se, e cada um seguiu o seu rumo, deixando vestígios na relva marcada por acomodar aquele inusitado encontro. Ela recompondo a sua natureza de anjo mensageiro, feliz por ter sentido algo maravilhoso, indefinível, até então desconhecido. Ele, regozijando-se por mais uma presa conquistada, mas sentindo, entretanto, que aquela tinha alguma coisa especial, seguiu arrastando a cauda e escondendo os cornos desvelados. Retornaram cada um ao seu lugar, sem realizar o objetivo que os levou até ali.

sexta-feira, 11 de março de 2011

OBSESSÃO


OBSESSÃO
Severino era apaixonado por Gerusa. Uma fixação que o impedia de ter interesse em qualquer outra mulher. Ele sempre a observava: quando ia e voltava da escola, quando ia à igreja com o pai, aos domingos, rezar pela alma da mãe morta, tísica. Ela era filha única e ficou com a responsabilidade de cuidar da casa. Sempre dava um jeito de estar bem próximo. Gostava de sentir o cheiro dela, de ouvir a sua voz, apesar de ela nunca ter falado com ele. Nem tinha certeza se algum dia ela o havia notado. Mas ele era persistente e sabia esperar, ainda tinha muita vida pela frente. A oportunidade de se aproximar aconteceu quando, num dia em que ela voltava da escola, deixou cair um caderno e ele, ágil como um cão, alcançou-o antes dela e, com toda a delicadeza, entregou-lhe o objeto, fixando o olhar aos seus olhos. Ela deu-lhe um sorriso tímido em agradecimento, ao tempo que lhe dizia um quase inaudível obrigado e afastou-se rapidamente. O seu coração apaixonado encheu-se de esperança, alimentado por cruel ilusão.
Um dia, na esperança de nova aproximação, juntou os poucos trocados de que dispunha e comprou um presente para ela: um lindo buquê com três rosas vermelhas muito perfumadas. Ela precisava saber do seu amor. Eles eram tímidos, e se ele não tomasse a iniciativa jamais viveriam seu sonhado romance. Foi o que fez no início daquela tarde de sol quente, depois que ela deixou a escola e virou a esquina em direção à sua casa, na rua vazia, sonolenta e poeirenta do sertão. Ele aproximou-se, entregou-lhe o presente e comunicou o seu amor. Ela assustou-se e disse-lhe que era louco, que tirasse a ideia da cabeça, afinal nem sabia quem ele era. Uma única vez ela lembrava-se de tê-lo visto: no dia em que ele lhe entregou o caderno que deixara cair. Disse-lhe que estava muito enganado e que jamais pensaria em namorá-lo.
Nem depois do inesperado passa-fora ele deixou de amá-la e, um dia, à porta da igreja ele a ouviu falar para o pai:
 “Aquele rapaz feio que está ali junto à porta, com cara de cachorro, está me perseguindo. Eu tenho medo dele.”
Jamais ele pensara em ouvir, da boca de quem tanto amava, aquelas palavras tão cruéis. Serviu-lhe, entretanto, para dar à sua vida um novo rumo. Cachorro, era isso que ele seria a partir de então.
Ele passou a ser visto perambulando pelas redondezas com um bando de cachorros vadios que viviam em cavernas escavadas nos morros fora do povoado para se abrigar das intempéries. Invadiam os sítios durante as noites para atacar os galinheiros. Era um bando grande, mais de uma dezena de cães, que tinham se afastado dos seus antigos donos por falta do que comer e o instinto de sobrevivência fê-los voltar à selvageria. Contam que Severino não só vivia com os cães, também agia como eles. Diziam que andava de quatro e os acompanhava no assalto aos sítios e que, não poucas vezes, o viram lá por onde viviam, disputando as cadelas no cio, até latia e gania, completamente integrado àquela vida animal.  
O bando, silencioso, por diversas vezes foi visto, durante as madrugadas, em frente ao portão da casa de Gerusa. Como os sitiantes começaram a usar maior rigor na vigilância de suas criações, eles passaram a buscar, também, os animais maiores para aplacar a fome e já estavam atacando pessoas.
Curiosamente, todos os rapazes que se aproximavam de Gerusa eram, depois, encontrados com o corpo dilacerado, vítimas dos cães. Por conta disso, todos passaram a se afastar dela, receosos. Diziam que ela estava amaldiçoada, que era uma bruxa e atraía os cães para quem se aproximasse dela. Vivia em semi-reclusão. Deixou de ir à escola e chegou a ser apedrejada e quase linchada quando o seu próprio pai foi atacado e morto pelos cães.
Certa manhã, sua casa foi encontrada toda aberta e abandonada. Ela desapareceu. Depois disso os animais não voltaram ao povoado e o grupo quase extinguiu. Alguns anos depois restavam poucos deles que ainda eram vistos, às vezes, acompanhados de um homem e uma mulher com duas crianças, todos de hábitos caninos.